- 11 de setembro de 2024
Coisa estranha
JOBIS PODOSAN
Quem observa a cena política brasileira neste momento com certa atenção verá algo que precisa ser explicado. Partamos das premissas de que os governos petistas foram desastrosos, de que o dinheiro público se esvaia para muitas direções, financiando desastres e fortunas fáceis, criando como reflexo a desonestidade geral, indo muito além do mediano rouba mais faz. Na verdade, fez a radicalização, chegando ao extremo do não rouba e não faz. O governo que acaba de iniciar o seu mandato, pretende ser o governo ideal, o que está consciência dos bons cidadãos e está previsto nas leis do país: o não rouba e faz.
Pelo tamanho superlativo da derrama de dinheiro público em vias criminosas ou inadequadas, a sensação que eu tive era de que, obstados os caminhos do desperdício, as sobras daí decorrentes serias suficientes para restabelecer a normalidade das despesas, fazendo com que a receita desse para equilibrar as contas. O dinheiro assim economizado viria aos borbotões abastecer aos cofres públicos. Por outro lado, o novo governo deveria ir em cima, com força, na busca dos dinheiros roubados ou desviados de fins públicos. Todo dinheiro indevidamente gasto deveria retornar ao erário com as sanções dos roubadores. Não basta aplicar os dinheiros públicos corretamente – isto é obrigação e não mérito – é preciso abrir os processos restauradores da moralidade e empobrecer radicalmente os ladrões, senão ficará parecendo a herança maldita que Lula diz ter recebido de Fernando Henrique Cardoso sem que nenhum processo fosse aberto para apurar os desmandos atribuídos a FHC.
O novo governo, já passados os cem dias iniciais, tem menos de três meses para botar a culpa de tudo nos governos anteriores, após estancar a sangria que diz existir. Após seis meses tem assumir parte de responsabilidade pelo que continua a acontecer no país.
Desde logo merece observar que a ordem jurídica permanece incólume, pois ainda não há direito novo que seja fruto da atividade do novo governo. O Brasil adotou o sistema jurídico dito romanista, pelo qual o governo se baseia inteiramente na lei, chegando Seabra Fagundes, um gigante das letras jurídicas no Brasil, a dizer que governar é cumprir a lei de ofício. O Presidente vem governando através de tuites, decretos e medidas provisórias. Os tuites equivalem aos famosos bilhetinhos do Presidente Jânio Quadros, que gerou o costume no governo de São Paulo, quando editou nada menos que 40 mil bilhetinhos e levou o costume para o Planalto. Quem quiser ter acesso aos bilhetes basta procurá-los na internet. Os bilhetes são o folclore de ontem, os tuites, são o folclore de amanhã, ambos engraçados (para os seguidores) e ridículos para outros (os desafetos). Ambos indevidos, por faltar a seriedade, a solenidade e formalidade que os atos administrativos requerem. Governos não são palco para ironias ou deboches, até o riso do governante deve ser respeitoso.
Os decretos que o novo governo vem editando, inclusive muitos serviram como ações de governo na comemoração dos primeiros cem dias de governo, não prestam para este propósito. Decretos não inovam a ordem jurídica, só os atos do Congresso Nacional podem fazer isto. Decretos, no direito brasileiro, salvo algumas pequenas exceções previstas na Constituição, não mudam a realidade jurídica do país. Decretos servem apenas para explicitar as leis e facilitar-lhes a execução. Decretos não são atos legislativos, mas atos administrativos. Ainda quando gerais e abstratos, sempre estão debaixo de alguma lei. Assim, não se pode comemorar a edição de um simples decreto como se fosse algo novo no país. Houve tempos, ditatoriais todos, em que decretos, decretos-leis e atos institucionais serviram para mascarar a vontade de uma única pessoa como se fossem atos legislativos típicos (1930-1934, 1937-1945 e 1964-1985, são exemplos). Tomo como exemplo o decreto nº 9758/2019 que estabelece regras sobre o tratamento entre autoridade na administração federal. Alguns estão festejando o fim dos pronomes especiais de tratamento no Brasil. O decreto é inócuo e inútil. Somente se aplica no âmbito do Poder Executivo Federal e, mesmo assim, quando não houver lei dispondo em sentido diverso. Equivale ao Presidenta da Dilma. O decreto é uma Coca-Cola sacudida, gerando apenas espuma, sem alterar nada. Desde o iluminismo e do constitucionalismo que não se pode admitir que a vontade de uma única pessoa seja uma lei, que é um ato abstrato dirigido à obediência de todos, se feito pelo órgão competente para legislar, que, no Brasil é o Congresso Nacional. A lei é sempre fruto da vontade geral. A lei obriga tão somente porque fruto da vontade dos próprios governados. Todo ato que seja imposto por um ou algumas pessoas sem o consentimento dos governados, é ditatorial, pouco importa se o seu conteúdo é bom ou ruim. O ato assim praticado não presta e não obriga. Somente pela força ele se mantém. Tanto isto é verdade que com o tempo o ato vira monstro e engole quem os praticou.
Já as medidas provisórias, estas são apenas um projeto de lei com vigência imediata para alcançar certos objetivos que a Constituição prevê. Não se pode governar com medidas provisórias, afinal um governo não é provisório. As medidas provisórias ou viram lei, quando aprovadas pelo Congresso Nacional ou perdem a validade se não forem aprovadas em 120 dias da sua edição. Isto quer dizer que, quanto mais o executivo edita medidas provisórias tanto mais fica dependente do Legislativo, que, por mera inação, as invalida.
O atual Presidente da República tem um privilégio especial: exceto a elaboração da Constituição originária de 1988, ele participou da elaboração de todas cem as emendas constitucionais e de todas as leis ordinárias e complementares que foram elaboradas nos últimos 28 anos, o que significa a quase totalidade das leis do Brasil. Ele sabe que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Governar é cumprir a lei aprovada pelo legislativo e sabe que só pode alterar os fatos com base na lei, sabe que deve falar menos e agir mais, produzir fatos e não versões, produzir consenso e não dissenso, não julgar os fatos anteriores e sim produzir os fatos pelos quais pretenda ser julgado no futuro.
O governo está estranho. Tuites, decretos e medidas provisórias são pouca coisa para se melhorar o país.