- 11 de setembro de 2024
O SISTEMA DOS QUATRO NECESSÁRIOS (IV)
JOBIS PODOSAN
AS CONDIÇÕES DE FUNCIONAMENTO DO SISTEMA
Como vimos, há quatro atores fundamentais no processo, com papeis distintos, mas todos objetivando a obtenção de um ato final, a sentença, que resolverá o problema que movimentou a jurisdição.
Certo juiz tomou posse numa vara com mais de 13.000 (treze mil) processos, tendo o mais antigo deles 10 (dez) anos. Isso não é nenhuma novidade no caso brasileiro.
Verificando cada um, o juiz constatou que muitos estavam mortos, isto é, não havia qualquer solução que fosse dada que interessasse mais às partes — havia um pedido de suprimento da vontade para que uma de uma jovem de 17 (dezessete) anos pudesse casar, já que o pai se opunha. O processo tinha 07 (sete) anos! Outrotanto, as partes deixaram de movimentar por muito tempo, foram chamadas, permaneceram silentes e os feitos foram extintos. Aqui uma observação se impõe. Todo processo resulta de um conflito de interesses. Todavia, o tempo não para à espera da decisão do juiz sobre o conflito. O tempo continua a operar a sua silenciosa ação sobre os fatos e as pessoas. Se a sentença demora demais, o tempo resolve o conflito, sempre com desprestígio da justiça. A grande maioria, porém, era de processos ainda úteis às partes.
O dado importante que resultou da visualização e correição em cada processo é o que interessa no presente trabalho. Em cada processo foi colocada uma orelha, denotativa do estado do processo, da identificação da providência adequada para regularizar o seu andamento e a quem incumbia a tomada da providência. Um caso particular chamou a atenção do autor: um inventário tramitava há 08 (oito) anos, tendo se tornado famoso no foro em função dos conflitos que gerava. Eram 36 (trinta e seis) volumes, com variados incidentes, 16 (dezesseis) advogados, 13 (treze) herdeiros entre conjugais, extraconjugais sabidos e extraconjugais que vieram a ser conhecidos após o óbito do autor da herança. Adotando o sistema dos quatro necessários, então apenas esboçado, o processo foi concluído em seis meses, apesar de um testamento haver aparecido em mãos de um dos herdeiros, gerando novo incidente. Voltaremos ao caso mais adiante.
Pois bem. Terminada a inspeção/correição, restava materializar, de forma racional, as providências antevistas. Um primeiro passo foi a classificação dos processos, de modo a evitar desperdício de tempo e desaparecimento dos feitos dentro do cartório, fato comum em varas desorganizadas, principalmente agora, que vários escrivães, sob aquiescência omissa dos juízes, resolveram guardar (leia-se: arquivar) processos em andamento em pastas. Basta um descuido, uma desatenção, para ficar nas hipóteses honestas, para que o processo desapareça. Assim, os processos foram classificados e arrumados segundo a sua natureza e ganharam números internos da vara que lhes indicava a prioridade de tramitação.
Aqui foi necessária a intervenção da Corregedoria Geral de Justiça para viabilizar as fases seguintes. O juiz era auxiliar da Corregedoria e submeteu à aprovação do titular do órgão um projeto de provimento estabelecendo, minuciosamente, os atos que poderiam ser praticados pelo escrivão, de modo a evitar perda de tempo dos juízes com a prática de atos não decisórios. Assim, advogados e partes poderiam saber quase tudo sem a necessidade de intervenção do juiz. O provimento foi baixado e o sistema posto em funcionamento. Esclareça-se que, hoje em dia, tudo isto está no novo Código de Processo Civil.
A ROTINA DE FUNCIONAMENTO
Finda essa etapa, foi estabelecida a seguinte rotina de funcionamento:
1. 07:30h: início do expediente;
2. 07:50h: entrega no gabinete do juiz de todos os processos conclusos — prontos para despacho, no dia anterior;
3. 12:00h: devolução dos processos ao cartório, já despachados;
4. 13:00h: remessa à publicação, no dia seguinte, dos despachos proferidos;
5. 13:30h: encerramento do expediente.
PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS
Para viabilizar a rotina acima, algumas providências foram necessárias:
1. a primeira, e mais importante de todas, o respeito delas pelo próprio juiz;
2. a divisão do trabalho cartorário, definindo quem fazia o quê e quem substituía quem;
3. conscientização de todos de que o patrão é o cidadão em geral e o que busca a justiça, em especial. Assim, impunha-se o tratamento respeitoso e imediato às partes e aos seus advogados. Reclamações internas sobre excesso de trabalho, vencimentos baixos e outras que tais, não eram assuntos a serem tratados com os usuários do serviço da justiça. Os componentes da vara, inclusive e principalmente o juiz, eram servidores públicos,portanto, prontos para servir;
4. estabelecimento de uma rotina no cartório a respeito da classificação dos processos, técnicas de arquivo para evitar o já mencionado sumiço de processos dentro da vara, formulários necessários, tramitação dos processos, recebimento de petições e outras formalidades, já definidas no provimento da Corregedoria;
5. a juntada de petições não dependia de despacho do juiz, sendo ato do escrivão, sob revisão daquele, já que, juntada a petição, impunha-se aconclusão, no dia imediato, salvo alegação de urgência, caso em que a conclusão seria imediata, sem opção de discricionariedade do escrivão;
6. o espaço físico foi determinado de forma que todos os compartimentos da vara tivessem comunicação interna, de modo a facilitar a execução do serviço, ficando, nos extremos, o escrivão e o juiz..
7. todas as portas permitiam o acesso imediato com o público, salvo a do juiz, que seria feito pela antessala, não como empecilho, antes como medida de organização e segurança;
8. os processos que não fossem despachados pelo juiz dentro do expediente (sentenças de mérito, liminares mais trabalhosas, decisões graves ou extensas) seriam devolvidos rigorosamente dentro dos prazos estabelecidos pela lei;
9. conscientização de todos de que excesso de trabalho é alegação de quem não se organiza. Aliás, a alegação de excesso é muito encontradiça onde há escassez de trabalho;
10. lugar de processo é no cartório e não no gabinete do juiz;
11. cinco dias antes da prestação de contas mensal à Corregedoria, os processos que não fossem movimentados deveriam ser levados a despacho do juiz para o impulso oficial;
12. se, por qualquer motivo, o expediente do dia não fosse despachado, o juiz trabalharia na parte da tarde ou levaria os processos para casa, de modo a evitar o acúmulo de processos;
13. adoção da noção metodológica de que é sempre possível fazer mais fácil. Assim, deveria haver por parte de cada um a busca permanente de melhorar seu próprio desempenho, com base na dicotomia simplicidade e segurança.
14. ao juiz não é dado dispor do processo a seu talante. Há de observar a preferência das classes preestabelecidas e não retardar os atos do seu ofício;
15. os atos do juiz são sentenças, decisões e despachos. Atos procrastinatórios (como os despachos virtuais: junte-se, voltem na próxima semana, renumerar as páginas...) devem ser abolidos;
16. regra para todos: fazer o que aprendeu e apreender fazendo.
O USO E O ABUSO DO PODER
Vale aqui relembrar a máxima de Montesquieu: é uma experiência eterna que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele. Por isto, é preciso que as coisas sejam dispostas de tal maneira que o poder detenha o próprio poder. Os quatro atores do sistema têm poderes e deveres e devem exercitá-los, dentro dos limites da lei.
Posto em prática esse sistema, o trabalho passou a se desenvolver de tal forma que foi alcançado um grau satisfatório de efetividade na entrega da prestação jurisdicional.
Isso aconteceu não só em função da organização da vara, mas, sobretudo, pela aplicação do sistema dos quatro necessários. Mas como isso funciona?
O princípio é simples e claro. Emerge da lei processual, nada foi inventado, apenas percebido e aplicado.
Em primeiro lugar o autor analisou a conduta do juiz. A lei atribui a esse ator do processo um papel predominante. Um conjunto de poderes instrumentais para que ele conduza o processo ao seu desiderato com firmeza e segurança. Acontece que, na prática, o juiz pode fazer uso devido ou indevido de tais poderes, intencionalmente ou não. A ideia capital é de que tais poderes estão subordinados sempre e sempre a um fim. Não são poderes de, mas poderes para. Isto é: o juiz não tem os poderes a seu serviço, mas poderes de condução. Poderes de timoneiro, para levar o processo ao seu porto final, que é a sentença.
Infelizmente, grande parte dos juízes se deixa seduzir por tais poderes instrumentais e passa a usá-los de modo indesejável, transmudando-lhe a natureza. Usa-os como se deles, juízes, emanassem. Esquecem que a autoridade, no estado de direito, jamais emana de pessoas, mas da lei, nunca do agente. Só existe autoridade quando o agente atua dentro e nos limites da lei. Fora daí, há só o abuso.
Continua..